9.8.18

.Sobre meninos e pedras.

Tenho estado às voltas procurando pelas palavras que expressem exatamente o que quero lhe dizer. Todo os dias desse último mês, desde que você deu a graça de chegar e iluminar esse mundo, tenho olhado dentro do meu coração para encontrar aquilo que desejo te contar. Há oito anos, quando conheci pela primeira vez a relação única e especial de uma tia e seus sobrinhos, comecei a tradição de dedicar a cada uma seu próprio texto de boas vindas. É uma forma de entregar um pouquinho de mim a vocês, um presente preenchido de bons desejos e afeto para a posteridade. Era de se esperar que depois de quatro vezes esse exercício fosse mais fácil, mas, não é assim. 

Você, ao seu próprio modo, é o primeiro. E também, o último. 

Olho para suas dobrinhas, seus dedinhos perfeitamente minúsculos, seus olhinhos apertados e reconheço o mesmo assombro, a mesma onda de afeto e o mesmo encantamento.Constato mais uma vez que as palavras não são suficientes para traduzir sentimentos. Lembro de uma frase de um dos meus livros favoritos que indaga: "O que são homens comparados à rochas e montanhas?"

Claro que você é ainda muito novo para saber, mas rochas e montanhas são estruturas geológicas milenares. Elas atravessam séculos sólidas e praticamente imutáveis. Suas lentas e graduais transformações são capazes de contar a história da nossa terra. Algumas são impressionantes e imensas. Algumas desafiam os homens a explorá-las. Algumas são extremamente preciosas. Quando comparadas à nossa frágil e breve existência, não parecemos mesmo grande coisa diante delas. 

Mas aí, meu pequeno, há um mistério maravilhoso que eu desejo te contar. Um mistério que esteve oculto por muitos séculos, mas que foi revelado. Esse mistério nos tornou assombrosamente especiais. O mistério é esse: a mesma voz que trouxe à existência as rochas e montanhas, não apenas nos formou a partir do pó, mas decidiu falar conosco. É por causa desses extraordinários momentos em que o Criador de todas as coisas fala conosco que nossa existência se justifica. Com nossas carcaças moles e sensíveis nos erguemos ao lado das rochas e montanhas para cumprir nossos respectivos propósitos. Um homem simples, pescador, há muitos e muitos anos ouviu essa voz e compreendeu. Porque ele compreendeu, recebeu um novo nome que marcaria para sempre a sua história. A ele foi dito: "Tu és Pedro". 

Então, quero desejar que você aprenda a reconhecer essa voz. Que você tenha seus ouvidos afinados para ouvi-la. Que você contemple as montanhas enxergando a grandeza para além delas. Que você, com resistência e sensibilidade, dedique sua vida a edificar e construir, afinal, você também é Pedro. 



9.9.17

.:Em um belo jardim:.

Enquanto Ele cuidava das multidões, elas, centenárias, assistiam  do alto monte.
Quando Ele se retirava para o seu lugar favorito, eram elas que forneciam sua sombra e frescor.
Para que Ele entrasse celebrado na cidade, elas cederam seus ramos alegremente.

Elas conheciam o significado de terem seus frutos prensados para ter o seu valor extraído, mas jamais esperariam pelo que aconteceria naquela noite. Naquela fria e solitária noite, Ele teve seu coração prensado em agonia. Naquela noite escura, sua essência foi exposta e o seu sangue regou as raízes delas. Então, em meio à dor e sofrimento, as mais belas palavras foram ouvidas. Ele disse: faça-se conforme a tua vontade. Elas testemunharam o mais extraordinário amor.

Talvez alguém possa pensar que você ainda é muito pequeninha e adorável para uma história triste assim. Mas, eu sei bem. Embora você, de fato, seja essa coisinha adorável, essa não é uma história triste. Ela é a mais feliz história. Essa mesma vontade, aceita naquela noite, atravessa os séculos e chega até você. Você também é expressão dessa vontade. Você também é prova desse extraordinário amor.

Olho para você estendendo seus raminhos e entrelaçando meu coração indefinidamente. Inesperada como as terceiras filhas o são, você chegou para completar e surpreender.  Num jardim de pinheirinhos, você nasceu Olívia e com a felicidade de ter suas irmãs para acompanhá-la pelo caminho. Meu desejo para você é que assim como suas árvores irmãs, sua vida esteja à serviço do Amor e que você O possa testemunhar sempre de perto.


5.3.14

. Sobre cafés e leites.

Se havia uma coisa que me frustrava profundamente quando criança era ser considerada “café com leite”. Para quem não sabe, café com leite é uma expressão popular para concorrente fraco, pouco hábil e que requer um desconto nas exigências do jogo para poder participar. Caçula de três irmãs e com primos de idades próximas, eu conheci muito bem a situação. Você pode até argumentar que ser café com leite não é nada de assim tão grave, que, afinal, eu recebia privilégios por ser a mais nova. Mas o problema do café com leite é que não importa o quanto você se esforçou, quão duro você jogou ou quão rigidamente você seguiu as regras: se você ganhar, o mérito nunca é seu.

Esse é o cerne do incômodo. Somos competitivos e estamos inseridos numa cultura que valoriza o sucesso como um deus. Estamos obcecados pelo desempenho. Ser “empreendedor”, “proativo”, “ousado” são apenas alguns dos jargões que circulam na conversas sobre o que é preciso para obter sucesso. Queremos vencer e, mais ainda, queremos o mérito por isso.

O que torna o cristianismo tão absurdo - loucura, como diria o apóstolo Paulo - é que a salvação é radical e impreterivelmente dependente da graça. Enquanto o islâmico reza em direção à Meca, o judeu guarda as tradições da Torá, o budista medita e faz boas obras, não há nada que o cristão possa fazer para salvar a si mesmo. Não há desempenho bom o suficiente que o faça conquistar a salvação. Nenhum número de rezas, nenhum cumprimento de rituais, nenhuma lista de obras de caridade. Porque toda a obra necessária para a salvação do cristão já foi consumada pelo único que é bom o suficiente para fazê-la. É a loucura do filho de Deus pendurado num madeiro que trouxe a salvação aos que crêem.

Quando essa verdade radical entra em conflito com o coração humano, uma das primeiras coisas necessárias para reconhecê-la é romper com o desejo de mérito. Não há espaço para o meu orgulho infantil quando eu reconheço a minha total incapacidade de ganhar. As exigências do jogo são altas demais e minha capacidade é impossivelmente pequena. Nem que houvessem todos os descontos, nem que todas as regras fossem amenizadas, não há maneira possível para que eu pudesse ganhar. A única maneira de vencer é reconhecer minha própria derrota e deixa-Lo vencer por mim. Quando olho para cruz de Cristo é que pela primeira vez eu entendo o que significa perder para ganhar. Nos resta tão somente reconhecer nossa pequenez e fragilidade diante dEle, para finalmente sermos revestidos de sua grandeza. Estou abraçando minha condição de café com leite: meu irmão maior venceu por mim.


13.1.14

- Ei, você aí!! O que você tá fazendo? Você é cego? Você não vê? Não tá vendo todas as ruínas e destruição ao seu redor? Como pode você manter essa expressão abobalhada e sorrir? Como você pode ignorar a sujeira que te cerca? Não vê os escombros e entulhos nos quais você está de pé, não vê esse pó cinza agarrado em tudo, inclusive em você? Que espécie de pervertido masoquista é você? Ou isso é algum tipo de bloqueio? Você é cego? Você não vê? 

- Ah sim, eu vejo. Mas ali, naquele cantinho, vê? O sol, ele está nascendo, ele continua a nascer. 
Então, já não será mais cinza. Me deixe sorrir. 



3.12.13

.Relicário.


Sua figura no horizonte era cansada, em cada passo parecia haver um esforço absurdo para continuar. O sol a pino, a areia fofa, o ar parado.
Mais poeira do que pele.
Mais flagelo do que roupa.
Mais corpo do que gente.
Contudo, ainda assim, era você. Mesmo por trás de toda aquela neblina que lhe cercava, reconheci o seu andar. Mesmo por trás das recém adquiridas rugas, reconheci seus olhos. E eles eram os mesmos, o mesmo calor e a mesma intensidade estava lá. O reconheceria entre milhares e milhares, reconheceria até que se passassem cem anos.
Então, corri. Corri com todas as forças que tinha, corri todas as batidas do meu acelerado coração. Quando toda a distância, e o tempo e o espaço desapareceu entre nós, você sussurrou com o resto de fôlego que tinha: vencemos.

17.11.13

.Vai.

Seguíamos caminhando em silêncio.

Ele, em um silêncio conhecedor. Já eu estava somente evitando que algum dos meus corriqueiros comentários idiotas estragasse a solenidade do momento.

Continuamos.

Eu apenas o seguia, não fazia ideia para onde íamos, mas ele parecia saber. Ele sempre sabe e isso era suficiente para me tranquilizar.  

Então, paramos. Sentamos. Ele começou a falar.

Terror, vergonha, assombro, dor, culpa, arrependimento, esperança, cura, alegria. Suas palavras trouxeram as mais profundas emoções que já senti. Suas palavras provocaram as mais poderosas revoluções que conheci. Suas palavras me desmascararam e me ergueram.
Suas palavras. De vida. Dele mesmo.

Essa tem sido a minha caminhada mais impressionante e, veja só, ela mal começou.


E disseram um para o outro: Porventura não ardia em nós o nosso coração quando, pelo caminho, nos falava, e quando nos abria as Escrituras? Lucas 24:32



29.10.13

Feridas são terrivelmente impressionantes quando você vê a dilaceração dos tecidos, o sangue coagulado, a violação da integridade.
O horror da dor nos ilude com o seu poder.
Pensamos: poderosa é a destruição.
Mas quão mais impressionante e poderosa é a cura que trabalha silenciosamente, reagrupando células, restaurando a pele e recuperando tudo sem que hajam marcas?
Tão, tão fascinante!
Ser curado me coloca numa categoria acima dos vencedores. E isso é assim, porque conheci a dor.